sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Detalhes

É um flash de memória.


É um riso familiar na platéia.


É um toque do telefone que se desliga infantilmente ao ser atendido.


É uma foto que se tira com os olhos, exposta na galeria da mente.


É um nascer do sol que não se viu em uma praia nublada.


É a noite em claro com amigos.




a caminhada na chuva.


o dia inteiro de pijamas.




e a maior dificuldade é saber se somos nós ou os detalhes que são mais importantes.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

O Passeio

O samba rolava solto pelas tantas da manhã, mas ela não saía por nada daquela cadeira, na ponta esquerda do salão. Já tinha recusado Jorge, Noel e até Cartola. Este último, com sua "Divina Dama", previa o que logo aconteceria (ou quem sabe foi o causador de tudo?).

"Atordoado fiquei
Eu dancei com você
Divina dama
Com o coração
Queimando em chama..."

Seu salto alto a incomodava. Pelo menos era o que seu gesto insistente de massagem nos pés esforçava-se para deixar claro. Com esse pretexto foi capaz de, até então, enganar vários pretendentes (cada vez mais insistentes), mas um ritmado tapear do pé esquerdo denunciava sua farsa. Talvez desejasse que a descobrissem, que alguém a puxasse a força para o meio da pista, recusando todas as suas desculpas, alguém merecedor de sua atenção. Não, nunca se permitiria a um pensamento tão soberbo. Se bem que um pouco de amor próprio não machuca ninguém.

“... Fiquei louco
Pasmado por completo
Quando me vi tão perto
De quem tenho amizade
Na febre da dança
Senti tamanha emoção
Devorar-me o coração..."

Recusou um último convite sem saber exatamente porque insistia em fazer aquilo. Estava lá pra dançar. Queria dançar, mas olhava desmotivada para aquele grupo desfoque de corpos. Uma bagunça. Sem perceber ajeitou o cabelo, uma mecha cobria seus olhos, ou foi um feixe de luz que passeou sobre seu rosto. Ela esperava.

"... Tudo acabado
E o baile encerrado
Atordoado fiquei
Eu dancei com você
Divina dama."

E esperava.
Subitamente Pixinguinha entra no palco. Sua flauta, doce, imediatamente flutua em sentido anti-horário pelo salão em um passeio ora despreocupado, ora apressado. Corre, gira, freia bruscamente, sobe em um looping perigoso e, como se em um ato deliberado, inconseqüente, acerta em cheio o grande globo de espelhos. Uma explosão de luzes coloridas, repletas do "olor da mais linda flor", brisa de Pixinguinha, desce (doce enlevo) sobre os casais. Lança-se, laça, entrelaça, envolve - revolve os pares pela pista.

A flauta acelera o passo, como se ansiosa por terminar seu solo. Voa desenfreada. Oscila indecisa, como o balão que se solta da mão da criança, sem que se tenha fechado o nó, e quer visitar todo o espaço antes de perder o seu ar, aproveitar a curta vida. A dama admira o rastro de fumaça incolor do vôo de Pixinguinha até o seu pouso final sobre um par de olhos perdidos, exatamente na ponta oposta do salão.


"Tu és..."

A multidão na pista fecha a sua visão. Ela nem percebe que está agora de pé buscando aqueles olhos, que pareciam, por sua vez, estarem em busca de algo, alguém. Quem parecia perdida agora era ela. Esticou-se inteira, quase subiu na cadeira, mas foi exatamente esse ímpeto absurdo que a trouxe de volta à consciência. Mas o que está acontecendo? Eu estou com o pé machucado, pensou enquanto sentava novamente.


"... do amor..."

Mergulhou o rosto nas mãos e segurou a respiração. Fantasiou que estava submersa na água, o pulsar da batida virou ondas suaves, lembranças da casa de praia. Afundava. Deixava-se calmamente afogar.
Uma figura parou a sua frente, convicta. Ou em atitude súplice?

"... Se Deus me fora tão clemente
Aqui nesse ambiente
de luz..."


Inconscientemente, ela aceita a mão salvadora que se estende pra ela e emerge daquele estado sonâmbulo. Afinal, ele a achara (ou foi ela?) e era merecedor - esforçava-se, com esse raciocínio, explicar a sua abrupta mudança de atitude, aquela facilidade em conceder a dança. O raciocínio durou pouco, logo estava entregue àquele passeio em um mundo misto de samba/valsa/poema. O tempo parou (embora, ao mais tarde recordar-se dos acontecimentos, nunca tenha passado com tanta pressa), só eles se moviam livres no espaço, presos um no outro. Braços, abraços. E...

"... Teu coração junto ao meu lanceado ..."

Era como se tudo acontecesse ao mesmo tempo: giro, olhar, passo, abraço, olhar, giro, passo. Abraços. O sopro da respiração "... Tu és..." no pescoço. "... de Deus a soberana flor..." O perfume.


"... Oh flor meu peito não resiste..."

Resiste. Resista! Quantas vezes já dançaram juntos? Uma amiga.
"... Tu és..."
Linda, quantos se apaixonam por ela a cada minuto?



"... Tu és..."
Resista. É seu amigo. Não é seu. É
"... tudo enfim que tem de belo..."


Deixavam-se levar em um perigoso jogo de faz de conta, camuflado sob o pretexto da interpretação, da emoção na dança (sempre um ótimo pretexto, quase uma convenção do universo dançante). Era só uma dança, um passeio. Depois daquilo tudo voltaria ao normal.

"... Oh meu Deus o quanto é triste
A incerteza de um amor..."

Mas passeavam por lugares nunca antes vistos. O caminho de volta, fragilmente marcado por migalhas, já fora devorado pelos pássaros logo na primeira estrofe.
E Pixinguinha, inconseqüente, sugeriu, em toda maldade, um último descontrole:

"... Depois de remir meus desejos
Em nuvens de beijos
Hei de envolver-te até meu padecer
De todo fenecer..."

A música silenciou-se e uma versão frenética de "Brasileirinho" já ocupava o palco imaginário. Os dois se olhavam, parados exatamente no centro do salão, alheios ao mundo sambando à sua volta. As palavras de cartola ecoando ainda na mente:

Fiquei louco
Pasmado por completo
Quando me vi tão perto
De quem tenho amizade
Na febre da dança
Senti tamanha emoção
Devorar-me o coração
Divina dama.

Ela se aproximou, tímida, de seu rosto. Ele estremeceu ("Hei de envolver-te até meu padecer"). Ela beijou seu rosto e agradeceu a dança. Um cavalheiro qualquer já a puxara dele.
Tentou encontrar o caminho de volta, mas estava perdido. Sentou-se na primeira cadeira que encontrou, não tinha salto alto como desculpa, mas nem precisava, a expressão alienada em seu rosto dizia tudo: ainda dançava, ainda não voltara do passeio. O estrago estava feito, nunca mais conseguiriam dançar juntos.

Daquele passeio, nenhum encontrou o caminho de volta.