sábado, 26 de setembro de 2009

A velhice na janela

Caminhava agora pela Desembargador Mota. Como tinha raiva do maldito "estar" de Curitiba! Era obrigado a estacionar três quadras do seu destino. “Relaxa”, pensou, poderia ser pior, sempre pode ser pior, é incrível como tudo pode piorar, até o pessimismo. De qualquer forma era bem mais perto de onde costumava estacionar para ir ao centro, cinco quadras mais perto para ser mais exato, 10 minutos a menos caminhando, mais tempo para o almoço, tempo que provavelmente perderia tentando se decidir onde comer e... “meu, você pensa demais”.
Uma moça muito alta passou por ele na direção oposta. Nem reparou se era bela ou feia, só alta. Gostava da beleza, de todos os tipos, mesmo da beleza feia, da inusitada que quase ninguém percebe. Era comum se apaixonar a cada cinco minutos. Planejava uma vida inteira a frente caso o acaso os aproximasse, ou se achasse o aproach certo, aqueles de cinema. Mas essa era apenas alta. Alta demais. Pensou que as pessoas altas deveriam ser proibidas, ressaltam demais a baixeza dos baixinhos, é agressivo. Já os baixinhos não, esses são, em suma, agradáveis, mas muito fáceis de irritar. Já viu alguma baixinha tranqüila? Se for tranqüila é doentinha, anêmica.
Esperou os carros passarem para atravessar a rua. Não paravam de vir. Resolveu andar mais um pouco adiante, para ganhar tempo. Tinha essa mania de não ficar parado, não perder tempo em nada, mas tinha que assumir que isso era apenas em relação ao outro, quando suas ações dependiam da espera dos outros. Era capaz de ficar o dia inteiro sem fazer nada realmente útil se estivesse totalmente sozinho. “Os carros não param nunca nessa rua”. Caminhou um pouco mais. Lembrou que uma vez quase foi atropelado por um ônibus. No dia, não viu sua vida inteira passando diante de seus olhos, pelo contrário, imaginou todo seu futuro evaporando. Hoje, cinco anos depois desse incidente, percebeu que tinha imaginado um futuro bem diferente. Como seria se quase fosse atropelado novamente, o que imaginaria?
Pensou na morte como uma realidade. Não estava pronto para morrer, mas não temia a morte. Sentiu raiva de si por tanta indiferença, tanto que conseguiu mudar esse sentimento quase que instantaneamente. Agora temia a morte e exigia mais tempo para se preparar (mesmo assim não atravessaria na faixa, nunca!), e pensava isso como quem negocia com o próprio ceifador maldito. Pensou até em propor uma partida de xadrez, ou quem sabe guitar hero? Sendo uma criatura tão ultrapassada provavelmente teria mais chances de ganhar (velha caricatura da morte, herança de Bergman). Achou absurdo estar pensando nisso, ele que apenas queria atravessar a rua para o seu destino, e, sem perceber a ambiguidade e seriedade da sentença, resolveu pensar menos.“Meu, você é retardado”.
Na casa de repouso do outro lado da rua, ao atravessar, viu uma velha triste olhando da janela do último andar. Parecia uma prisioneira encarcerada há anos, com apenas aquele quadrado na parede como contato com o resto do mundo, aquele mesmo pedaço de mundo todo dia, mas hoje era uma parcela de mundo excepcional: com ele compondo o quadro. (Tão modesto). Ele poderia fazer a diferença do seu dia. Pensou em acenar, mas não conseguiu. "Nem estava me olhando", pensou, "e, se estivesse, só iria se sentir pior por ter que agüentar zombaria de um idiota". Costumava ser muito mais espontâneo. Era a idade. Sentiu os anos pesarem. Ainda era muito jovem, mas relutava por não ser mais criança, queria ser criança para sempre. “Cresça imbecil”.
Imaginou-se dali a 60 anos, também preso em um quarto de repouso, uma criança de castigo por ter envelhecido. O que pensaria enquanto olhasse da janela? “Pessoas jovens deveriam ser proibidas”.
A senhora na janela lhe acena, mas não é uma saudação.
Uma buzina. Pneus gritando.
Nada passa diante de seus olhos. Tudo já havia passado, inclusive o futuro.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Retrato de um pôr-do-sol

Acordou com um gosto estranho na boca, um gosto que sentira há anos atrás enquanto dançava. Um gosto de angústia com sabor de querer, uma saudade salgada misturada com a agridoce paixão apressada. Sabor de beijo roubado, que de roubado só tem o nome, pois já era há muito esperado. Nos últimos dias vinha sentindo essa sensação na boca, como se fosse uma simples lembrança, mas naquela manhã era diferente, sentia o gosto real, idêntico ao primeiro, mas a música... qual era?

Chegou pela primeira vez antes da hora marcada, ironicamente seria também a última. O encontro fora marcado com a condição de que não haveria mais encontros, nunca mais poderiam se ver. É certo que a promessa fora feita e desfeita várias vezes antes. Eles acumulavam uma série de despedidas, das mais variadas, chorosas de partir o coração, dramáticas e doloridas (inclusive fisicamente), apáticas e fingidas, mas todas com a silhueta esvaziando à distância, sumindo na esquina.

Enquanto esperava, o gosto se intensificava, como o faminto que saliva ao sentir o aroma de comida. Mas como não podia lembrar a música? Lembrava tê-la puxado pelo braço - um misto de ansiosa brutalidade e pressa cuidadosa - ao meio do salão, a dança, as provocações, os olhares evadios e vadios, e por fim o... Ela apareceu, como sempre flutuando pela calçada, e sentou ao seu lado. Por um momento teve dificuldade em separar a realidade do súbito flashback, mas logo ela começou a falar. “Odeio calor”. Sim, era ela mesma.

Saíram sem rumo nem direção, ainda assim querendo encontrar um lugar, uma metáfora do que pareciam ser. Naquele dia veriam as coisas mais bizarras, mais pelo seu estado quase que onírico do que pela realidade do lugar estranho em que foram parar. Seria o dia em que atravessariam o Paraná em segundos, correriam pelos Andes, fugiriam com o circo e se perderiam em uma reserva florestal. Poderiam ter vivido para sempre com os guaranis, passando os dias identificando as formas das nuvens no céu. Poderiam ter vivido para sempre.

O que foi que tirou a vida deles? Quem destruiu o sonho? Como se tivessem separado um par especial de diabretes para atormentá-los: o da inveja, com o nariz maior que o rosto, sempre metido em suas vidas, carregando a tiracolo sua diabinha pançuda da mentira e falsidade, a mais egoísta e traiçoeira de todas. Mas isso seria dar força demais ao que não tem valor. O erro, se houve, foi deles. O que os separou foi exatamente aquilo que os uniu: seu amor um pelo outro. Se não fazia sentido no começo tampouco faria agora. Era um fato, o que os atraía era o que os obrigava a se afastar. As dores, as brigas, o ciúmes, o que quer que fosse eram apenas notas dissonantes em acordes de sua música, música esquecida.

Descobriram um caminho de volta para casa. Um caminho cheio de belas árvores que aparavam os raios do sol, já se retirando para seu sono. As sombras dançavam a sua frente como se tentassem providenciar um pouco de beleza naquele momento melancólico. Logo viria a noite e tudo seria passado. O gosto era tão intenso que ardia em sua boca e ele não pensava em nada além de beijá-la como a primeira e última vez. Parecia que sincronizados com o movimento do sol ambos lentamente se aproximavam um do outro até que, no instante em que a orla do sol tocou o horizonte, seus lábios se tocaram falsamente contrariados.

O gosto.

Por mais que tentasse, o sol não pôde evitar seu curso e mergulhou no horizonte. Se lhe perguntassem a opinião, o astro rei diria que fora uma das cenas mais belas que presenciara desde seu nascimento, pecando apenas na falta de trilha sonora. Mas agora quem reinava era a noite.

Ele a olhava, com a vista embaçada, enquanto sua figura mais uma vez se dissolvia na escuridão. Impulsionado pela Luna louca, quis correr atrás dela, mas desistiu. Sabia que nunca deixaria de sentir aquele gosto único, mas a música, essa estava perdida para sempre na memória.



Bipolaridade Fosforescente

Dor no peito,
Nó na garganta,
Borboletas no estômago,
Obliquidade no olhar,
Parafusos soltos,
Incompletude intermitente,
Síndrome do arroz de festa,
Indecisão peremptória (ou não),
Desassossego abrupto,
Bipolaridade bipolar,
Mamilos eriçados,
Desejos supérfluos,
Regressão perpétua,
Palavras ao vento,
Pontinhas das roupas enroladas e amassadas,
Furos na parte superior posterior das orelhas,
Solilóquios violentos,
Adrenalina preguiçosa,
Temerosidade aérea,
Exibisionismo gratuito,
Ocupação espacial exagerada(característico de bailarinos kelsonianos, agravado apenas pela remoção completa de pêlos),
Daltonismo alheio (olhos verdes camuflados),
Cabelo enrolado,
Beleza extrema,
Magreza extrema,
Extremidades extremas,
Extremismo extremo,

Entre outros.


Esses são os principais sintomas. Infelizmente ainda não há cura. O tratamento é muito caro e ainda em fase de pesquisa e desenvolvimento. Se sofrer desse mal sugiro se ocupar em alguma atividade que consuma muita energia, como dança, ou algo que possa esvaziar metafisicamente sua mente, como escrever. Mesmo assim não vai funcionar. Então, azar seu.
A boa notícia é que, até agora, só foi detectado um caso no mundo todo:



A má é que pode ser contagioso.

domingo, 14 de junho de 2009

Ando tão distraído

Ao ver essa menina, virei menino maluquinho.
Troquei os pés pelas mãos, meu chapéu por panela.
Esqueci tudo o que sou, não lembro nem um pouquinho.
Nem nome, nem religião, em minha mente só dá ela.

E de tanta distração, perdi minha própria alma.
Fugiu de casa pelo vão (vê se pode!) da janela.
Não volta há anos, eu sei, mesmo assim não perco a calma.
Pois se já não mora em mim, é que hoje habita nela.





ass: menino maluquinho, monstrinho, criança em tamanho de gente grande.

sábado, 13 de junho de 2009

Imagem

Uma coisa branca,
Eis o meu desejo.

Uma coisa branca
De carne, de luz,

Talvez uma pedra,
Talvez uma testa,

Uma coisa branca,
Doce e profunda,

Nesta noite funda,
Fria e sem Deus.

Uma coisa branca,
Eis o meu desejo.

Que eu quero beijar,
Que eu quero abraçar,

Uma coisa branca
Para me encostar

E afundar o rosto.
Talvez um seio,

Talvez um ventre,
Talvez um braço,

Onde repousar.
Eis o meu desejo,

Uma coisa branca
Bem junto de mim,

Para me sumir,
Para me esquecer,

Nesta noite funda,
Fria e sem Deus.




Dante Milano(1899-1981)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

domingo, 22 de março de 2009

É coisa de quem nasce

É coisa de ator, sabe? Se esconder em máscaras, persona atrás de persona, dissimular, enganar, verter lágrimas quando o choro é esperado (mesmo que não sinta dor alguma), rir em excesso só para causar ataques de riso alheios e se alimentar da sonoridade deles.
É coisa de cineasta franzir a testa e olhar para o infinito, em ato de quem desvenda os mais profundos mistérios existenciais e chega ao limite da eternidade, quando na verdade pensa "droga, esqueci a roupa no varal".
É coisa de Publicitário dar cores para pessoas, nomes para calçadas, olhar todas as coisas do mundo e repensá-las sempre com um "what if...?".
É coisa de maluco/poeta/dançarino/escalafobético correr pelado na rotatória, roubar sapo de jardim e deixar bilhete de resgate. Fazer o circo pegar fogo só pra assar o marshmello. É coisa de pelado roubar rotatória escalafobética e deixar poeta de jardim.
É coisa de piá mijar o nome na parede da freira/diretora; tentar descarrilhar o trem e depois chorar da possibilidade disso ter acontecido, matar o tempo matando vampiros e kobolds.

É coisa de nada deitar no meio da rua e esquecer dos carros.

É coisa de imortal descer a curva do diabo, na hora do rush, sem freios, com os pneus carecas e com um amigo histérico na garupa.
É coisa de Indiana Jones encher o porão de lava, não ter nenhuma calça isenta de buracos e colaborar com a troca de dentes da irmazinha.
É coisa de viajante intergalático em um universo paralelo procurar em cada livro seu passado, em cada filme seu futuro e em cada canção seu presente.
Coisa de perdido buscar em cada beijo o primeiro e o último.
É coisa de apaixonado dançar no chafariz, girar até cair, testar todos os colchões da loja de colchões, bater o carro todo dia.
É coisa de masoquista amar, e escrever é coisa de quem ama.



É coisa de "Pssoa" com Psi, sabe?
Tem certeza que sim?

sábado, 3 de janeiro de 2009

impronunciável


Deve haver uma palavra que


uma vez dita


transmita


tudo que já foi dito;



uma palavra que


uma vez dita


se repita


ao infinito.




Deve haver uma canção


que se dança de improviso,


que se entenda menos de ouvido


e mais de coração.




Deve haver uma palavra que


uma vez dita


traduza aflita


o coração profundo;



Uma palavra que


de tão bonita


uma vez só dita


mudará o mundo.








"shhh. Faz silêncio, ouve minha loucura..."