quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Trapo - Cristóvão Tezza

Caro ouvinte, ouvante, ouvário. É triste ter que te informar a morte do maior poeta desconhecido de Curitiba: Trapo, o marginal drogado, o romântico grosseiro, o amante e assassino da poesia. Tanto tentou matá-la que acabou morto por ela. Ta lá, no chão de um pensionato sujo, todo ensangüentado. O desgraçado tinha que ser tão dramático e dar um tiro na cara?! Pensando bem, em se tratando do Trapo, não foi tão dramático assim. Sei lá se foi ele mesmo que deu o tiro. Talvez tenha sido sua infância odiosa, o desprezo de seu pai, ou seu impossível amor por Rosana. Será que não tava tentando passar um recado? Tipo, ele sendo um poeta... querendo matar a poesia... se matando... Nah! Não era nenhum idiota caprichoso pra dar um recado tão podre assim. Dizem que tem alguma coisa a ver com os gregos. Quem disse isso? Um tal de Cristóvão Tezza. Ah! e o professor Manuel também. Esse eu boto a mão no fogo que matou a charada. E eu que não dava nada pra ele. Mas sei lá, não interessa como morreu né? Só sei que enquanto tava vivo, ele era muito foda.




"Mas deixa eu explicar. É que houve alguns filhos da puta no passado (não muito longínquo) que por meio de artes do demônio e da magia negra, lançando mão do espiritismo e da metempsicose às avessas, houve uns desgraçados, uns desonestos, uns ladrões, uns larápios, uma súcia de escroques que, por não terem imaginação própria, por não disporem da mínima intuição criadora (e nenhum lastro de honestidade intelectual, evidente), rascunharam, escreveram, datilografaram e publicaram TODOS OS POEMAS que por direito imanente, impostergável, genético, soberano, absoluto, ME PERTENCIAM – poemas tão meus quanto a piroca que trago pendurado entre as pernas. Ou seja: não há engano possível. E, o que é pior – e insolúvel, esses canalhas viveram muito antes que eu tivesse nascido, de modo que não me restou nenhum recurso, legal ou não, para reaver o que legitimamente me pertence. Sou a vitima de um crime perfeito."

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Vidas Secas

Em uma planície avermelhada e rachada, onde só o azul irritante do céu domina autoritário, negando a presença de qualquer nuvem de esperança, as únicas sombras que se formam são cinco silhuetas tortas. Elas pertencem a Fabiano, o rústico chefe da família, sinhá Vitória, sua esposa, e os dois meninos, seguindo logo atrás deles a fiel cachorra baleia. Essa família de retirantes em busca de sobrevivência, é vítima da terrível crueldade poética do autor Graciliano Ramos, que nessa obra se supera. Durante essa expressão da miséria humana ele não concedendo nenhuma piedade aos personagens, transformando-os numa extensão do cenário, e outras vezes, confundindo-os com animais. Aliás, a personagem com maior humanidade parece ser a cachorra, tendo um capítulo inteiro dedicado a ela, a única que recebe a simpatia do autor e é sacrificada, cortada de seu sofrimento. Fabiano e sua família seguem com suas Vidas Secas, sendo atormentados, mais que pelo calor, pela falta de esperança que faz evaporar seus sonhos.




"Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro de palha de milho, acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar regalado. _Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra. Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando: _Você é um bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. Chegara naquela situação medonha - e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha. _Um bicho, Fabiano."