Caminhava agora pela Desembargador Mota. Como tinha raiva do maldito "estar" de Curitiba! Era obrigado a estacionar três quadras do seu destino. “Relaxa”, pensou, poderia ser pior, sempre pode ser pior, é incrível como tudo pode piorar, até o pessimismo. De qualquer forma era bem mais perto de onde costumava estacionar para ir ao centro, cinco quadras mais perto para ser mais exato, 10 minutos a menos caminhando, mais tempo para o almoço, tempo que provavelmente perderia tentando se decidir onde comer e... “meu, você pensa demais”.
Uma moça muito alta passou por ele na direção oposta. Nem reparou se era bela ou feia, só alta. Gostava da beleza, de todos os tipos, mesmo da beleza feia, da inusitada que quase ninguém percebe. Era comum se apaixonar a cada cinco minutos. Planejava uma vida inteira a frente caso o acaso os aproximasse, ou se achasse o aproach certo, aqueles de cinema. Mas essa era apenas alta. Alta demais. Pensou que as pessoas altas deveriam ser proibidas, ressaltam demais a baixeza dos baixinhos, é agressivo. Já os baixinhos não, esses são, em suma, agradáveis, mas muito fáceis de irritar. Já viu alguma baixinha tranqüila? Se for tranqüila é doentinha, anêmica.
Esperou os carros passarem para atravessar a rua. Não paravam de vir. Resolveu andar mais um pouco adiante, para ganhar tempo. Tinha essa mania de não ficar parado, não perder tempo em nada, mas tinha que assumir que isso era apenas em relação ao outro, quando suas ações dependiam da espera dos outros. Era capaz de ficar o dia inteiro sem fazer nada realmente útil se estivesse totalmente sozinho. “Os carros não param nunca nessa rua”. Caminhou um pouco mais. Lembrou que uma vez quase foi atropelado por um ônibus. No dia, não viu sua vida inteira passando diante de seus olhos, pelo contrário, imaginou todo seu futuro evaporando. Hoje, cinco anos depois desse incidente, percebeu que tinha imaginado um futuro bem diferente. Como seria se quase fosse atropelado novamente, o que imaginaria?
Pensou na morte como uma realidade. Não estava pronto para morrer, mas não temia a morte. Sentiu raiva de si por tanta indiferença, tanto que conseguiu mudar esse sentimento quase que instantaneamente. Agora temia a morte e exigia mais tempo para se preparar (mesmo assim não atravessaria na faixa, nunca!), e pensava isso como quem negocia com o próprio ceifador maldito. Pensou até em propor uma partida de xadrez, ou quem sabe guitar hero? Sendo uma criatura tão ultrapassada provavelmente teria mais chances de ganhar (velha caricatura da morte, herança de Bergman). Achou absurdo estar pensando nisso, ele que apenas queria atravessar a rua para o seu destino, e, sem perceber a ambiguidade e seriedade da sentença, resolveu pensar menos.“Meu, você é retardado”.
Na casa de repouso do outro lado da rua, ao atravessar, viu uma velha triste olhando da janela do último andar. Parecia uma prisioneira encarcerada há anos, com apenas aquele quadrado na parede como contato com o resto do mundo, aquele mesmo pedaço de mundo todo dia, mas hoje era uma parcela de mundo excepcional: com ele compondo o quadro. (Tão modesto). Ele poderia fazer a diferença do seu dia. Pensou em acenar, mas não conseguiu. "Nem estava me olhando", pensou, "e, se estivesse, só iria se sentir pior por ter que agüentar zombaria de um idiota". Costumava ser muito mais espontâneo. Era a idade. Sentiu os anos pesarem. Ainda era muito jovem, mas relutava por não ser mais criança, queria ser criança para sempre. “Cresça imbecil”.
Imaginou-se dali a 60 anos, também preso em um quarto de repouso, uma criança de castigo por ter envelhecido. O que pensaria enquanto olhasse da janela? “Pessoas jovens deveriam ser proibidas”.
A senhora na janela lhe acena, mas não é uma saudação.
Uma buzina. Pneus gritando.
Nada passa diante de seus olhos. Tudo já havia passado, inclusive o futuro.