terça-feira, 25 de agosto de 2009

Retrato de um pôr-do-sol

Acordou com um gosto estranho na boca, um gosto que sentira há anos atrás enquanto dançava. Um gosto de angústia com sabor de querer, uma saudade salgada misturada com a agridoce paixão apressada. Sabor de beijo roubado, que de roubado só tem o nome, pois já era há muito esperado. Nos últimos dias vinha sentindo essa sensação na boca, como se fosse uma simples lembrança, mas naquela manhã era diferente, sentia o gosto real, idêntico ao primeiro, mas a música... qual era?

Chegou pela primeira vez antes da hora marcada, ironicamente seria também a última. O encontro fora marcado com a condição de que não haveria mais encontros, nunca mais poderiam se ver. É certo que a promessa fora feita e desfeita várias vezes antes. Eles acumulavam uma série de despedidas, das mais variadas, chorosas de partir o coração, dramáticas e doloridas (inclusive fisicamente), apáticas e fingidas, mas todas com a silhueta esvaziando à distância, sumindo na esquina.

Enquanto esperava, o gosto se intensificava, como o faminto que saliva ao sentir o aroma de comida. Mas como não podia lembrar a música? Lembrava tê-la puxado pelo braço - um misto de ansiosa brutalidade e pressa cuidadosa - ao meio do salão, a dança, as provocações, os olhares evadios e vadios, e por fim o... Ela apareceu, como sempre flutuando pela calçada, e sentou ao seu lado. Por um momento teve dificuldade em separar a realidade do súbito flashback, mas logo ela começou a falar. “Odeio calor”. Sim, era ela mesma.

Saíram sem rumo nem direção, ainda assim querendo encontrar um lugar, uma metáfora do que pareciam ser. Naquele dia veriam as coisas mais bizarras, mais pelo seu estado quase que onírico do que pela realidade do lugar estranho em que foram parar. Seria o dia em que atravessariam o Paraná em segundos, correriam pelos Andes, fugiriam com o circo e se perderiam em uma reserva florestal. Poderiam ter vivido para sempre com os guaranis, passando os dias identificando as formas das nuvens no céu. Poderiam ter vivido para sempre.

O que foi que tirou a vida deles? Quem destruiu o sonho? Como se tivessem separado um par especial de diabretes para atormentá-los: o da inveja, com o nariz maior que o rosto, sempre metido em suas vidas, carregando a tiracolo sua diabinha pançuda da mentira e falsidade, a mais egoísta e traiçoeira de todas. Mas isso seria dar força demais ao que não tem valor. O erro, se houve, foi deles. O que os separou foi exatamente aquilo que os uniu: seu amor um pelo outro. Se não fazia sentido no começo tampouco faria agora. Era um fato, o que os atraía era o que os obrigava a se afastar. As dores, as brigas, o ciúmes, o que quer que fosse eram apenas notas dissonantes em acordes de sua música, música esquecida.

Descobriram um caminho de volta para casa. Um caminho cheio de belas árvores que aparavam os raios do sol, já se retirando para seu sono. As sombras dançavam a sua frente como se tentassem providenciar um pouco de beleza naquele momento melancólico. Logo viria a noite e tudo seria passado. O gosto era tão intenso que ardia em sua boca e ele não pensava em nada além de beijá-la como a primeira e última vez. Parecia que sincronizados com o movimento do sol ambos lentamente se aproximavam um do outro até que, no instante em que a orla do sol tocou o horizonte, seus lábios se tocaram falsamente contrariados.

O gosto.

Por mais que tentasse, o sol não pôde evitar seu curso e mergulhou no horizonte. Se lhe perguntassem a opinião, o astro rei diria que fora uma das cenas mais belas que presenciara desde seu nascimento, pecando apenas na falta de trilha sonora. Mas agora quem reinava era a noite.

Ele a olhava, com a vista embaçada, enquanto sua figura mais uma vez se dissolvia na escuridão. Impulsionado pela Luna louca, quis correr atrás dela, mas desistiu. Sabia que nunca deixaria de sentir aquele gosto único, mas a música, essa estava perdida para sempre na memória.



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